quarta-feira, 1 de julho de 2020

ESCRAVAGISMO E PRECONCEITO RACIAL NA HISTÓRIA DO VALE DO MUCURI

Historiador de Teófilo Otoni assina artigo sobre monumentos escravistas e a recusa da negritude na região


O assassinato do jogador de basquete George Perry Floyd Jr., dia 25 de maio nos Estados Unidos, estrangulado por um policial branco que ajoelhou-se em seu pescoço durante uma abordagem, com toda repercussão do episódio no mundo, motivou o historiador Márcio Achtschin Santos, doutor em História e Cultura Política, professor da UFVJM, a publicar na imprensa regional um artigo intitulado “Teófilo Otoni, os monumentos escravistas e a recusa da sua negritude”.

No texto, Márcio mergulha na história da região que se processava quase 200 anos atrás para tentar compreender o cenário atual.

Veja a publicação. ↓


TEÓFILO OTONI, OS MONUMENTOS ESCRAVISTAS E A RECUSA DA SUA NEGRITUDE

Márcio Achtschin Santos,
doutor em História e Cultura Política, professor da UFVJM


Na Bélgica, no Reino Unido e nos Estados Unidos têm-se realizado intensos debates e reações das mais diversas sobre os monumentos e espaços públicos que exaltam personagens com práticas escravistas e genocidas. A Warner Media retirou de seu catálogo “ ... E o Vento Levou”, repensando a relação entre os clássicos do cinema e o racismo. No Brasil, nos grandes centros também vêm ocorrendo reflexões nessa direção. Em São Paulo estão sendo feitas duras críticas acerca de monumentos que exaltam os bandeirantes, grupos que praticaram no período colonial ações brutais contra indígenas e quilombos.

Essa discussão deve ser trazida também para o Vale do Mucuri. Nesse sentido, concentro apenas na questão negra em função dos fatos e manifestações globais que ocorrem atualmente, ainda que a realidade indígena na região seja motivo de reflexão de igual importância.

A cidade de Teófilo Otoni surgiu em 1853, período em que ainda predominava o trabalho escravo. A preocupação da região foi realizada tendo à frente a Cia do Mucuri, criada por Teófilo Ottoni. Essa empresa manteve ao longo de sua existência 27 escravos. Por diversas vezes, utilizou mais de uma centena destes alugados, caso da abertura da estrada Santa Clara.

Pelos dados do Censo de 1872, em torno de 10% da população da região do Mucuri era escrava. Os cativos realizavam todo tipo de atividade, desde o trabalho nas lavouras de café até serviços em comércio urbanos. Grandes fazendas como a Monte Cristo, Liberdade e Itamunhec chegaram a ter, cada uma, mais de cem escravos.

Com o fim da escravidão, a região manteve a base do trabalho braçal negro. É o caso da Estrada de Ferro Bahia e Minas (EFBM), que utilizou uma farta mão-de-obra disponível no nordeste mineiro e seu entorno. Muitos desses trabalhadores vieram de comunidades quilombolas, como Helvécia, hoje distrito pertencente ao município de Nova Viçosa, na Bahia.

Mesmo com a escravidão tendo sido abolida em 1888, até os anos de 1950, era recorrente o açoite contra os ferroviários que faziam a conserva da EFBM. Passados os anos, apesar de uma história oficial construída a partir de uma forte influência germânica, a realidade é que a população do Vale do Mucuri é ainda hoje majoritariamente negra ou de descendência afro. Esses dados podem ser confirmados pelo Censo de 2010.

No entanto, a presença de atores negros na história regional sempre foi apagada do cenário cotidiano. Os negros não se reconhecem nos espaços percorridos na cidade de Teófilo Otoni. A narrativa das estátuas, das praças, das ruas, não os representa. Além de Teófilo Ottoni, que recebe o nome da cidade, diversos proprietários de escravos são homenageados com nome de ruas, como Capitão Leonardo e Ana Amália, ou nome de escolas, como Manoel Esteves Ottoni. Este, inclusive, foi processado em 1874 por ter escravizado uma criança negra livre com a alegação no processo que “. . . um senhor como ele qualquer um podia servir”.

Por outro lado, é farta a relação de negros que participaram da vida social, política, econômica e cultural da cidade de Teófilo Otoni. Mas nenhuma referência de expressão foi dada a eles nos espaços públicos. Nestor Medina, ferroviário, foi uma liderança expressiva, perseguido pelo regime militar de 1964 por sua atuação política. Wander Lister de Carvalho e Sá, neto de avó liberta pela Lei do Ventre Livre e chamado de “Negão” nas campanhas eleitorais, foi prefeito da cidade entre os anos de 1977 a 1982.

Monumento ao imigrante alemão

     Outros anônimos fizeram parte dessa história. Em 1887, Cesário, escravo de capitão Leonardo Ottoni, se recusou a comer a refeição estragada que lhe serviam. Ameaçado de açoite pelo proprietário, tentou fugir quando foi atingido por um tiro no braço. Em um gesto de coragem, caminhou 12 quilômetros até a cidade e prestou queixa contra o senhor. Ou a escrava Clementina, que em 1869, não suportando a violência da escravidão, espancou d. Jacinta José Coelho. A cativa foi morta, sendo encerrado o processo com a alegação que a mesma havia suicidado.

Existem quatro monumentos de destaque na cidade de Teófilo Otoni. O do fundador Ottoni, o imigrante alemão e, mais recentemente, o imigrante libanês. O quarto, que poderia, do mesmo modo que os outros, incorporar a figura humana, está na praça expresso por uma máquina. O trabalhador da Estrada de Ferro Bahia e Minas é representado por uma máquina.

A famosa "Maria-Fumaça" da ferrovia

Essa relação entre os quatro símbolos é emblemática, deixando evidente a invisibilidade dada à participação negra na história regional. Os monumentos existentes, e, principalmente, os não existentes, devem ser referências para reflexão. É um ponto de partida para identificar quem somos e quem negamos ser por mais de um século e meio.



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