quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

COVID-19: EM NANUQUE, CASAL VAI COMPLETAR 1 ANO DE AUTOCONFINAMENTO

  

Desde março que Jaques e Valdete optaram pelo isolamento social, recolhidos em apartamento no centro da cidade

 

Trancados no apartamento há quase 1 ano



Ela tem 57 anos, professora aposentada, já trabalhou no comércio local; ele, aos 70, também aposentado, é bacharel em Direito, já foi comerciante e proprietário de oficina mecânica, além de servidor público municipal. Valdete Baptista de Almeida e Jaques da Conceição Figueiredo estão juntos há 21 anos, só que, de março do ano passado até aqui, passaram a ficar “bem mais juntos”. O motivo: a pandemia da Covid-19.

 

No primeiro andar da esquina das ruas São Lourenço e Viçosa, centro de Nanuque


Assim que as primeiras notícias sobre casos do novo coronavírus registrados no Brasil passaram a ser divulgadas mais intensamente, já em março, os dois tomaram uma decisão radical: simplesmente resolveram abandonar o convívio social e se recolheram ao apartamento onde moram, no primeiro andar de um prédio que fica na Rua São Lourenço, esquina com a Rua Viçosa, próximo a supermercados, lojas, bares e lanchonetes.

 

De lá para cá, mais de dez meses transcorridos, aproximando-se do primeiro ano de autoconfinamento. 


Até quando? Não há resposta.

 



“VIVENDO A DOIS NA PANDEMIA”

 

Em conversa com o editor do JORNAL DE NANUQUE, prof. Ademir Jr., a professora Valdete permitiu-se a reflexões sobre o momento:

 

“Se fosse escrever um livro, o título seria ‘Vida a Dois na Pandemia’. A vida a dois é um desafio que, muitas vezes, é abandonado no meio do caminho, por muitos desistirem de tentar vencê-lo. Eu, no entanto, como autêntica brasileira que sou, não desisto fácil. Aliás, nunca desisto! Vivo há 21 anos ao lado do meu parceiro, o distinto senhor Jaques da Conceição Figueiredo.”

 

JN – Imagino que não tem sido tarefa fácil, não é?

 

VALDETE – Não. Não foi e não é. Porém, tenho ao meu lado um grande companheiro de vida, amigo, cuidador de mim, sempre disposto a brigar por mim, com quem acaso vier a me ferir. Um companheiro que me carregou no colo, me deu banhos e até me trocou fraldas, quando da ocasião em que fraturei o fêmur. Passei meses sobre uma cama... Como não expressar minha gratidão? Como não estar confinada ao seu lado, enfrentando com fé e coragem esse horror designado pandemia?

 

Foto: antes da pandemia, claro...


JN – Amor, sacrifício, gratidão, companheirismo...

 

Valdete – Sim, mas não são somente esses os motivos que nos mantêm juntos. Eu mesma decidi que eu iria quebrar o recorde... [risos] Se é que você me entende... e quer saber de uma coisa? Eu realmente quebrei! [mais risos]

 

JN – Então, foi um adeus à vida social?

 

Valdete - Estamos a um passo de comemorarmos um ano de confinamento total e absoluto, juntos, sem poder rever os amigos tão queridos, sem ir dançar no Pedra Negra, sem ir ao Calçadão ouvir nosso amigo Alesandre Honorado cantar as belíssimas canções seresteiras de que tanto gostamos.  Isto se justifica pelo fato de formarmos um casal de altíssimo risco: ele, 70 anos, diabético e vítima de um infarto; eu, vítima de duas síndromes raríssimas que a medicina prega incuráveis.

 

JN – E a diversão?

 

Valdete – Juro que o confinamento é realmente absoluto. Juro. Em termos de diversão, sempre consigo dar um jeitinho. Passamos nosso tempo, ora tendo nossas famosas ‘DR’ (discussões de relacionamento), ora segurando a tristeza que dá, de não podermos estar na companhia das pessoas queridas, ora nos consolando, enxugando as lágrimas do outro, pela perda de pessoas tão amadas por nós, tiradas do nosso convívio pela Covid-19, de forma brusca, inesperada e cruel.

 

Presença constante em festas, cantores e dançarinos de primeira

Antes, durante, antes...


JN – Juntos e sempre juntos?

 

Valdete - Não somos um casal perfeito. Isso é fato. Estamos bem distantes de atingir o nirvana, porém costumo dizer que casal que se confina junto, por um ano inteiro, que consegue sobreviver junto, assistindo ao horror pelo qual o mundo inteiro passa... Ah! Esse casal está fadado a permanecer junto, a menos que Deus decida o contrário. Permita-me um trocadilho? Não há o dito popular que reza que casal que vive junto, dorme junto?  Pois então, casal que enfrenta uma pandemia junto, sobreviverá ,junto.

 

JN – Convivência selada, então?

 

Valdete – Você perguntou sobre como nos divertimos, né? Olha, sempre damos um jeito. Costumo dizer que vivemos na prisão de Alcatraz. Aqui, ninguém entra, ninguém sai.

 

NOTA DA REDAÇÃO: Alcatraz é uma ilha localizada no meio da Baía de São Francisco na Califórnia, Estados Unidos. Inicialmente foi utilizada como base militar, e somente mais tarde foi convertida em uma prisão de segurança máxima, fechada em 21 de março de 1963. (Coincidentemente, ano em que Valdete nasceu)

 

Baldinho que desce...

... e que sobe...

... vai subindo até chegar às mãos do casal

No baldinho entra de tudo: alimentos, remédios, material de limpeza e tudo o mais, além das imprescindíveis latinhas de cerveja, afinal ninguém é de ferro.


JN – E o dia a dia? Compras? Alimentos? Remédios?

 

Valdete - Somente via telefone ao amigo Cleber, mas ninguém entra. Tudo nós recebemos através da cordinha, com o famoso baldinho dependurado [risos] Mas, às vezes, do alto da nossa varanda, Jaques pega o violão e fazemos uma bela live para a fila do Supermercado Epa, que fica logo ao lado do apartamento, além de um posto de combustíveis. Olha, acreditem se quiserem, mas recebemos até assovios e palmas. Falta um tantinho só pra darmos autógrafos. [risos]

 

JN – Artistas do primeiro andar?

Valdete – Quase isso. Aliás, olhar a fila do Epa da minha varanda tem sido um grande recurso pra amenizar nossas angústias e tristezas, visto que, volta e meia, vemos alguém conhecido na fila e dou um acutíssimo grito, chamando pelo nome da pessoa vista, e recebemos, mesmo de longe, um sorriso, um aceno. Aí, a tristeza ameniza um pouco, pois um sorriso e um aceno, mesmo à distância, trazem um pouco de alento à nossa alma. Poxa, agora bateu a vontade de chorar, me emocionei... [pausa na entrevista]

 

JN – Saudades, lembranças... Como diria o Roberto Carlos: “muitas emoções...”

 

Valdete – Sim, muitas. Nada, porém, me dói mais o coração de que ficar distante de minha pequena princesa, minha neta Liz, aliás, 'Luz' da minha vida. Difícil não poder mais colocá-la em meu colo, cantar pra ela dormir, como antes da pandemia. Difícil só poder ver minha filha de longe. Difícil não poder pegar no colo, meu netinho Théo, prestes a nascer. Desculpe, mas difícil é não chorar nesse momento. [outra pausa]

 

Foto de 2014, quando quebrou o fêmur: sem tempo pra tristeza


JN – Perfeitamente compreensível.

 

Valdete – E assim, vou narrando, com muita tristeza, mas como sempre consigo sorrir e brincar, minha história de confinamento  com Jaques. E eu a termino com a sábia frase “Se não fosse... seria cômico." Mas, ainda haveremos de nos reencontrar, de rever e abraçar familiares e amigos, pois tenho fé que tudo vai passar e que sobreviveremos.

 

Boas lembranças eternizadas em fotografias


JN – Se alguém disser que vocês ‘exageraram’, o que você diria?

 

Valdete – Não creio que estejamos sendo exagerados, visto que temos consciência da gravidade da situação, considerando ainda que sabemos que somos pessoas incluídas no grupo de alto risco.

 

JN – Fazem uso de medicamentos?

 

Valdete - Durante a pandemia, eu sim. Fiz e faço uso de antidepressivos e remédios pra dormir. Isto se deve ao fato de que sempre tive dificuldade pra dormir, e as preocupações inerentes à pandemia fizeram com que a insônia se acentuasse. Jaques, não, porque sempre dormiu fácil. Não posso dizer que a precaução superou o medo ou vice-versa. Não, não superou, pois tenho ouvido falar de pessoas que contraíram o vírus mesmo com todos os cuidados tomados. Mas, se o medo superou a precaução, talvez sim, porque com o avanço da pandemia, os cuidados têm se redobrado, e o medo – creio - aumentou.

 

JN – Recomendaria o autoconfinamento a outros casais sem filhos?

 

Valdete – Certamente, eu recomendaria a outros casais que fizessem o mesmo, porque, em minha opinião, é de que os maiores transmissores do vírus estão no grupo dos mais jovens, por não temerem, crendo que a morte é  iminente somente aos mais velhos. Aconselharia, principalmente, àqueles que direta ou indiretamente têm algum convívio e/ou contato com pessoas idosas ou de fator de risco.

 

JN – Ensinamentos com a pandemia?

 

Valdete – Muitos. A pandemia me trouxe muitas e importantes reflexões, dentre elas, maior empatia e compaixão para com o próximo, sentir a dor do outro, ser mais solidária com minhas ajudas, valorizar mais os momentos que temos a oportunidade de estar ao lado de pessoas que amamos – família, amigos etc.

 

Um "tchau" e até qualquer dia de volta à normalidade da vida social


MAIS SOBRE O CASAL

 

Valdete tem formação em Normal Superior. Professora aposentada pelo Município e pelo Estado de MG. Trabalhou em empresas da cidade, como Moto Nanuque, Alcana, Auto Nanuque e até como síndica e locutora do Condomínio da Estação Rodoviária de Nanuque.

 

Jaques, formado em Direito pela Fenord (Teófilo Otoni), trabalhou no Banco da Bahia (onde hoje é o Bradesco), na Auto Nanuque, foi proprietário de oficina mecânica e trabalhou na Secretaria da Fazenda e na Secretaria de Obras – Prefeitura Municipal de Nanuque.


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