Naknenuk,
a origem dos nanuquenses
Família de botocudos (Wikipedia) |
Trouxe-me espanto ao ler um site de turismo que fazia um breve histórico sobre o Vale do Mucuri, descrevendo os povos originários da região como grupos violentos, “ferozes” e que praticavam o “canibalismo”. Impressiona como as informações construídas nos anos de mil e oitocentos, quando no Brasil colonial o governo português decretou guerra aos pejorativamente chamados botocudos, ainda são replicadas em pleno século XXI.
Os grupos indígenas que viveram no nordeste de Minas Gerais no século XIX eram diversos e com vivências extremamente complexas. Um aspecto dificultador para identificar as características dos indígenas foi a visão distorcida e simplista dos colonos que ocupavam a região do Mucuri.
De modo geral, animalizava-os, considerando como povos bárbaros, traiçoeiros, vingativos e que adotavam práticas canibalescas. Uma parte em função dos permanentes conflitos entre os próprios grupos botocudos, outra parte pela tendência colonizadora a perceber o outro com características violentas. Acabaram por estimular no imaginário da época a visão dos nativos do Mucuri como canibais. A imagem embrutecedora do chamado botocudo tinha também o objetivo de impor os valores civilizatórios, reforço do ideal de desenvolvimento e progresso do século XIX.
Havia para os colonizadores a divisão, simplista e dicotômica, entre índios mansos (Naknenuk) e ferozes/canibais (Giporok). Naknenuk significa o “não da terra”, provavelmente pela presença recente no Mucuri de novos indígenas, consequência dos deslocamento desse grupo vindos fugidos da ocupação estabelecida na região do Rio Doce. Já Giporok tem o significado de perverso, hostil à presença de outros povos. Se os Naknenuk adotaram a política de rendição, os Giporok resistiram, ainda que desiguais, à dominação.
Na realidade, o mito de práticas antropofágicas responsabilizadas aos botocudos era consequência da própria brutalidade colonizadora em função das práticas dominadoras e do terror em decorrência dessa violência, pois a antropofagia não pertencia aos rituais dos nativos do Mucuri.
Corroborou muito com a imagem do nativo a belicosidade presente em sua cosmologia e organização social. Havia como pertencente ao universo social botocudo a força do simbólico em detrimento da materialidade e praticidade dos valores ocidentais oitocentistas.
São marcantes no universo sociocosmológico botocudo a liderança política e a força sobrenatural. O líder botocudo é uma pessoa carregada dessas forças sobrenaturais, o que dava a ele a capacidade de prever doenças transmitidas de forma transcendental pelos inimigos, podendo causar, em caso extremo, a morte se atingido pela “flecha mágica rival”. Um grupo sentia-se protegido se tivesse a liderança de um xamã forte com capacidade de blindar o grupo de flechas invisíveis e mortais.
Entendendo ser a morte resultado de um assassinato orientado espiritualmente por feitiços, a reação contra inimigo eram ataques reais. Com o objetivo de eliminar aqueles que foram, de forma sobrenatural, responsáveis pela morte dos membros de sua aldeia, os ataques eram disparados contra a tribo rival, que tinham também poderes xamânicos.
Para os botocudos, as forças sobrenaturais ganhavam maior vigor se os indígenas estivessem em locais considerados por eles encantados. Daí a importância da terra não apenas como local de preservação da vida, mas também como espaço sagrado.
A ocupação intensa de colonos no século XIX no Vale do Mucuri fez diminuir os espaços de sobrevivência dos povos originários da região em favor da lavoura. Desse modo, esses confrontos internos ficaram ainda mais acirrados à medida que as matas eram ocupadas pela agricultura. Esta, sim, foi a principal responsável pela violência e extermínio indígena. Mas o desaparecimento dos povos chamados Botocudos merece uma narrativa à parte.
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Márcio Achtschin Santos, PhD em História pela UFMG e professor da UFVJM.
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