A escravidão no Vale do Mucuri
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Pintura de meados de 1800 intitulada: Am Not I A Man and a Brother - Wikimedia Commons |
O movimento migratório ocorrido no Vale do Mucuri no século XIX surgiu em um momento que a escravidão sofria seus primeiros abalos no Brasil, especialmente por pressão inglesa em busca de ampliação de mercado consumidor. Mas, apesar da história regional ignorar constantemente a presença escrava, o trabalho cativo foi fartamente utilizado em todo nordeste mineiro, inclusive após a abolição em 1888.
Minas Gerais era a província que possuía o maior número de escravos no Brasil nos anos de mil e oitocentos. Até bem pouco tempo, a historiografia considerava o Mucuri-Doce-Jequitinhonha como exportadores de escravos para outras regiões em Minas Gerais. Mas, pelas revisões recentes, foi apenas o Jequitinhonha quem abasteceu outras regiões, inclusive o Mucuri.
Evidencia-se assim a necessidade de se fazer um hiato entre a realidade dessas duas regiões nas pesquisas até então realizadas. À medida que as matas do Mucuri iam sendo ocupadas em suas “beiradas”, na primeira metade do século XIX, já se tem notícias do uso de escravos nas propriedades agrícolas. São os casos dos atuais munícipios de Malacacheta e Ladainha.
A reocupação da região (considerando que já estava ocupada por povos indígenas) foi realizada de modo mais sistemático tendo à frente a Companhia do Mucuri, criada pelo político e comerciante Teófilo B. Ottoni em 1847. Essa empresa manteve ao longo de sua existência 27 escravos. Por diversas vezes, utilizou mais de uma centena destes alugados, caso da abertura da estrada Santa Clara.
Pelos dados do Censo de 1872, em torno de 10% da população do Mucuri era escrava. Por esse censo, a quantidade de escravos na região era de 605, em uma população de 6.864 pessoas. Havia 455 crioulos, escravos nascidos no Brasil, e 155 africanos. Os cativos realizaram todo tipo de atividade, desde o trabalho nas lavouras de café até serviços em comércio urbanos.
O ambiente abolicionista do século XIX contribuiu para que o poder reativo dos escravos fosse um traço marcante do Mucuri, com fartos registros de enfrentamentos coletivos e individuais. Inclusive foi, nos anos de 1850, na vila de Santa Clara, atualmente localizada no distrito de Nanuque, onde ocorreu o primeiro homicídio realizado por um escravo que se tem conhecimento. O ato foi praticado contra o engenheiro polonês Christiano Wisseuski, contratado pela Companhia do Mucuri.
Com o fim da escravidão, a região manteve a base do trabalho braçal negro. É o caso da Estrada de Ferro Bahia e Minas (EFBM), que utilizou uma farta mão-de-obra disponível no nordeste mineiro e seu entorno. Muitos desses trabalhadores vieram de comunidades quilombolas, como Helvécia, na Bahia. Mesmo com a escravidão tendo sido abolida em 1888, até os anos de 1950 era recorrente o açoite contra os ferroviários que faziam a conserva da EFBM.
Passados os anos, apesar da recusa da história oficial, a realidade é que a população do Vale do Mucuri foi e ainda é ainda majoritariamente negra ou de descendência afro. Esses dados podem ser confirmados pelo Censo do IBGE de 2010. Mas, a presença de atores negros na história regional sempre foi apagada do cenário cotidiano.
Os negros não se reconhecem nos espaços que vivenciam em seu cotidiano. Nenhuma referência de expressão foi dada a eles nas ruas, praças e escolas. Os monumentos existentes, e, principalmente, os não existentes, devem ser referências para reflexão. É um ponto de partida para identificar quem somos e quem negamos ser por mais de um século e meio.
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Márcio Achtschin Santos, PhD em História pela UFMG e professor da UFVJM.
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